Chuva de sentimentos
Uma das cenas que mais me impressionou foi no filme Dr. Givago, quando, logo no início do filme, o personagem ainda criança está no enterro de sua mãe. Depois de coberta de terra a tumba, ele fecha os olhos e imagina a mãe lá dentro, no escuro, fechada. Confesso que apesar do tempo decorrido, esta imagem de vez em quando me vem à lembrança, principalmente quando ouço notícia da morte de alguém. A imagem chega a incomodar-me, sobremaneira, quando a morte é de alguém próximo, amigo, familiar.
E em dias de chuva então, a lembrança me causa certa angústia, imagino o corpo da pessoa, invadido pela enxurrada, ficando umedecido, desconfortável, mais facilmente exposto àquela condição. Onde ficaram os cuidados, o carinho, a atenção dispensados durante toda uma existência? Os agasalhos comprados com tanto trabalho na escolha ou confeccionados com esmero e amor pelas mãos dedicadas de mãe, madrinha, avó, tia? Os abraços, o afago, o calor das mãos, o sorriso, a capacidade de doar-se? Quando é gente conhecida, com a qual convivi e conhecia intimamente a sua sensibilidade, esses dias chuvosos trazem-me essas lembranças. Foi o que aconteceu na morte de minha mãe, cuja comoção pelo seu passamento tragou-me vários anos em incompreensível desestruturação emocional, fraqueza física, angústia e insônia e pesadelos quando conseguia pegar no sono. Precisei fazer tratamento médico para poder, num curto espaço de tempo, praticar a máxima “a vida continua” , já que desde muito cedo tive (todos lá em casa tiveram) de arcar com minha própria subsistência. No começo parecia que tudo ia bem, depois percebi que era um faz de conta, porque emagreci de repente, perdi totalmente a resistência física e emocional. Bem, passados uns dez anos, consegui recuperar. Agora sei que isto não é normal, mas na época não tinha a menor noção de como lidar com o problema, com a morte de um ser querido tão próximo, que entendi depois, era o sustentáculo para a minha estrutura emocional. Já adulta, tive de reeducar-me sob novos pilares, desta vez alicerçados sob minha própria experiência. Como uma criança que dá os primeiros passos até poder andar confiante, caindo e levantando-se, machucando-se e curando as feridas. A dimensão do que sentia pude experimentar logo após seu enterro, porque choveu. Não dá para descrever em palavras o que se passava no meu íntimo. Uma angústia, um sofrimento, uma dor, a impotência de não poder fazer nada para livrá-la da chuva fria, das águas que invadiriam sua última morada, o frio, sua natureza sensível e queixosa submetida a tanto desconforto. Pude avaliar como evoluí nesse sentido há pouco tempo, com a morte de meu pai. Apesar de achar muito feio o fim do ser humano, o colocá-lo num buraco que o tempo não conserva, reagi com mais serenidade quando após o evento caiu uma chuva torrencial. Se bem que o sentimento em relação a meu pai fora sempre de compaixão, isto após muito trabalho de autoconhecimento e aceitação dos fatos que fazem parte de minha história. Com o tempo, aprendi a ver com mais realismo os eventos da vida. Não me deixar machucar por uma amizade mal correspondida, aceitar que o ser humano é feito de contradições, as idas e vindas de pessoas queridas e aquelas que apenas eram importantes por um breve espaço de tempo, com as quais precisávamos aprender alguma coisa ou deixar ir algo velho que representava apenas um peso morto a carregar. O tempo nos torna mais donos dos nossos sentimentos, da nossa palavra, das nossas opções. E agora em dias chuvosos, já sou capaz de ouvir o som que ela traz, abrigar-me no recôndito de mim mesma, observar que a chuva, tal o ser humano, faz parte do ciclo eterno da natureza. E que suas águas, como tudo na vida, tem um destino, um oceano que as acolhe, mas que, inexoravelmente, passa. 02/02/2008
DIANA GONÇALVES
Enviado por DIANA GONÇALVES em 02/02/2008
Alterado em 02/02/2008 |