Dirce Carneiro - Diana Gonçalves

Textos

DISCURSO NA ÍNTEGRA DE JOSÉ MUJICA, EX-PRESIDENTE URUGUAIO NO RIO DE JANEIRO
Leia transcrição da íntegra da palestra de José Mujica na Universidade do Estado do RJ
José Mujica | Rio de Janeiro - 30/08/2015 - 15h43
Mais de 10 mil foram à UERJ assistir fala do ex-presidente e senador uruguaio: 'para mudança, precisamos de seres coletivos e superação do individualismo'      
Na quinta-feira (27/08), o ex-presidente e senador uruguaio José Mujica participou de um evento na Concha Acústica da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) para mais de 10 mil pessoas. Abaixo, leia a íntegra da transcrição do discurso de Mujica, produzida por Pedro Aguiar.
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Mujica falou na Concha Acústica da UERJ na última sexta-feira (28/08)


Queridos,
Lembremos: ninguém, mais que ninguém, eu é que tenho de agradecer a vocês o calor que me prestam, por sua juventude, pelas lembranças de tantos e tantos e tantos estudantes que foram ficando pelos caminhos de nossa América Latina. Recebam meu agradecimento de um velho de 80 anos que uma vez foi jovem. E lembrem-se: as repúblicas surgiram pelo sonho de que as maiorias mandem.
E ainda vivemos no continente mais injusto e ao mesmo tempo mais rico em recursos naturais do mundo. A minha geração não pôde, mas vocês têm de continuar levantando a bandeira da igualdade.
Lembrem-se: que estão vivos porque nasceram, mas têm nisto até certo ponto podem orientar a sua vida, ou então o mercado rouba a sua vida. Esse é o dilema: ter consciência e escolher o rumo, ou deixar que o mercado trace o seu rumo. Dependerá de vocês.
Porque a vida é linda. Não há nada mais lindo que a vida, mas é preciso defendê-la pela liberdade. E não deixe que te roubem a liberdade. A liberdade não se vende: a liberdade se ganha, e se ganha fazendo algo pelos demais, sem mandar a conta. Isso se chama solidariedade.
Isto é uma luta entre o egoísmo natural que a natureza nos põe para que cada um lute pela sua vida e as de seus entes queridos, e a solidariedade é o interesse da espécie, do caminhar do homem sobre a Terra. Sem solidariedade, não há civilização.
Devemos viver nessa contradição fenomenal: nunca, nunca o homem teve tanto. É possível mudar a natureza. É possível salvar o planeta. É possível povoar os desertos. É possível cultivar o mar. É possível esparramar a vida humana pelo universo. A vida humana.
Mas, para isso, é preciso começar a pensar como espécie. Não só como país. É preciso assumir a humanidade, o mundo inteiro. Os pobres da África não são “da África”: são nossos! Os que morrem no Mediterrâneo tentando atravessar são nossos. Compatriotas são todos os abandonados que existem no mundo, todos os esquecidos, porque pertencem à nossa espécie, embora não se dêem conta, embora estejam cheios de egoísmo, embora estejam cheios de miséria.
É a hora de um continente diferente, de uma civilização diferente. Não temos que imitar a Europa, nem o Japão. Não podemos querer o desenvolvimento com dor, o desenvolvimento com angústia. Desenvolvimento com felicidade para todos. A generosidade é o melhor negócio para a humanidade. E o pior negócio são os bancos.
Por isso, eu tenho que agradecer a vocês pelo carinho, pero quero transmitir a vocês que, às vezes, a dor ensina mais que o triunfo. Pode-se viver com os justos, pode-se viver com sobriedade, e pode-se viver com sobriedade para ganhar a liberdade. Você não pode gastar sua vida trabalhando e trabalhando para pagar prestações e continuar, e continuar... É preciso gastar um tempo para trabalhar, porque, se você não trabalha, você vive de alguém outro que trabalha. A solidariedade tem uma companheira que se chama responsabilidade. Mas tem um tempo para trabalhar. Como diz a Bíblia: “Viverás com o suor de tua testa”. Mas você não nasceu só para suar; nasceu para viver. Portanto, você tem que ter tempo para o amor, para os seus filhos, para os seus amigos, para algum jovem de quem você goste e você diga. Se a sua vida se transforma em pagar prestações, e trabalhar, horas e horas e horas, você chegará ao fim da sua vida sendo um objeto do mercado, que terá comprado toda a sua liberdade.
Queridos, esta etapa da sociedade capitalista precisa de uma cultura funcional a seus interesses, e a cultura deste tempo é o hiperconsumo. Cada um tem de ser um comprador escravizado, eternamente escravizado, que compre e fique sonhando em voltar a comprar, e que confunda isso com felicidade.
Nenhum governo vai resolver isso! Quem resolve isso é a sua consciência, ou ninguém resolve. Ou você deixa que te controlem, ou aprende a se controlar. Isso é como a criança que tem de atravessar a rua: você pode avisar, “Devagar”, cuidar da criança. Mas é melhor que a criança aprenda sozinha a atravessar a rua. Você tem de aprender na vida a atravessar por dentro do mercado e que não te roubem a liberdade. E isso se chama “vontade”. Toda manhã, quando levantar, pense e faça dez minutos de reflexão: se o que você fez está bem ou está mal. Nunca haverá um mundo melhor se não lutarmos para melhorar-nos nós mesmos. A minha geração acreditou que era mais fácil e confundiu toneladas de aço e de cimento com felicidade humana. Que a de vocês não repita o mesmo erro e aprenda com nossos erros. Vocês têm de cometer os seus, não os nossos. Porque senão terá sido uma besteira o que vivemos.
Vocês têm que lutar no campo da cultura. Não se consegue mudança no mundo material se não se mudar a cultura. Por maior mudança material, se continuarmos com a cultura deles, estamos submetidos, porque a submissão está aqui [na cabeça], mas aqui também está a liberdade. Isso eu aprendi com a solidão do calabouço. E quero transmitir a vocês para que façam a sua vida.
A nossa América pode ser um continente lindo, de paz e de solidariedade, de carinho, porque chegamos tarde e temos o mundo que eles fizeram para ver, e este mundo tem ciência e tecnologia como o homem jamais teve, e isso é positivo, se tiver alma, se tiver consciência. Mas esta civilização não tem consciência: tem caixa-forte para guardar o dinheiro.
Se você é universitário, tem de se dar conta de que não é só uma mudança de sistema, mas uma mudança de cultura. É uma mudança civilizatória. É uma batalha muito mais funda do que se pensou no meu tempo. E precisa de gente que dedique sua vida a isso. Que faça de sua vida uma aventura de não só sonhar com um mundo melhor, mas de lutar por ele, gastar a vida lutando por ele.
Por favor, aos 80 anos, não venho buscar aplausos. Venho acender a chama da militância pelas causas nobres. Não há homem insubstituível: há causas insubstituíveis. E essas causas precisam de defesa coletiva organizada de homens.  Os seres humanos somos gregários. Precisamos de ferramentas coletivas para tentar modificar a realidade. Os homens sozinhos, isolados, por mais geniais que sejam, não são mais que franco-atiradores. Os nunca franco-atiradores ganharão as batalhas. Quem ganha são as massas. E isso é preciso entender.
É preciso criar ferramentas políticas de compromisso coletivo e aprender a dor de andar coletivamente, o que muitas vezes significa aprender a perdoar porque ninguém é perfeito. Mas os perfeitos ainda continuam falando isolados. E para que exista mudança são necessários gigantescos seres coletivos. É preciso superar o individualismo e criar consciências coletivas, se querem ter força de incidir na sociedade. Se querem por o nome clássico, há muitos, luta de classe, como quiserem, não importa. Mas nunca separados. Isso significa ter bem claro qual é o adversário principal e quais são as diferenças pequenas com nossos parentes, com nossos amigos, e não transformá-las na causa principal, porque isso é atomizar-nos, e atomizados somos fracos. E isso significa construir confiança. Mas saibam de uma coisa: a confiança no continente está afetada. Você deve viver como você pensa. Porque ao contrário você terminará pensando como você vive. Mais claro: se a sua vida se desliza para viver com as formas e valores da minoria privilegiada, a longo prazo você acabará pensando como a minoria privilegiada. A disciplina do cérebro, a disciplina da liberdade, também se ganha com os valores com os quais se vive. Não se pode lutar pela justiça, pela igualdade, por acabar com a pobreza, e olhar de cima para baixo a pobreza dos demais. É preciso aprender a conviver com a sociedade assim como ela é. Isso significa que você tem de corpo e alma servir e viver de acordo com os valores da maioria e, quando a maioria melhorar, você também vai melhorar. Mas não antes.
Então, muda a idéia de pobreza e de riqueza. Pobres são os que precisem de muito. Esses são pobres porque não conseguem nada. E ricos são os que têm o carinho das pessoas. São valores distintos de esses todos. Os homens e as mulheres precisamos de gratificação na vida, mas não podemos confundir a gratificação com uma conta-corrente. A alma e o carinho não se depositam na conta-corrente. E é este o caminho da felicidade humana: ser útil aos seres fracos, aos que têm dificuldade, à falta de justiça, não se cansar de lutar como um Dom Quixote ao longo da vida. Não é pegar um prêmio, não é chegar a um final, mas ter um caminho lindo, porque o final é o próprio caminho, o andar, e o andar, e o andar, e passar o bastão para que outro o leve. Isso é uma vida com conteúdo, porque depende da sua decisão, e não de que te imponham de fora.
Não concordem comigo. Pensem, quando forem embora, e ponham a cabeça no travesseiro. Há dois caminhos: o que você pode escolher e o que a realidade do mercado te impõe. Você pode ir trabalhar e poderá ser, dentro de 40 anos, um aposentado poderoso de uma empresa multinacional, e terá trocado de carro a cada dois anos, e não vai faltar para seu filho nada que faltou para você. Mas você não terá tempo de dar um beijo nele e de passear com ele pela praia, falando com ele como um homem velho fala com um homem que está surgindo. Essa é a diferença. Você terá todos as geringonças materiais provavelmente mas será um estranho para seu filho e para seus amigos. E seu filho terá boas roupas, boa comida, mas terá sido criado na solidão. Isso depende da clareza que você tenha nesta etapa da vida, quando começa a tomar decisões.
Não espere que um governo ou partido mande em você. O que está em jogo é a sua consciência, a sua capacidade de discernimento, e de ser independente ou não. Porque eu já disse: acho que a hora da solidariedade é também a hora da responsabilidade com o compromisso social. A juventude passa, mas as causas nobres não passam.
E, bem, meu agradecimento e aqui tem uma pilha de perguntas, e algumas não vou poder responder. Sei de algumas coisas... e, de outras vivo, para aprender.

RESPOSTAS ÀS PERGUNTAS
Estão em crise os valores de nossa civilização. Esta etapa do capitalismo não pode gerar puritanos ou quacres. Não: gera corrupção. Não é uma idade de aventura. É uma idade de sepultura. Portanto, naturalmente, estão caindo formas ancestrais. Dentro das repúblicas inseriram, meteram, entraram usos e costumes ainda não nobiliárquicos, ainda feudais. Não viram o tapete vermelho, não viram o desfile com cornetas, não viram que os presidentes são rodeados por uma corte que parece uma monarquia. E o problema não são os presidentes: o problema é toda a corte.
[gritos de “Fora, Cunha!” e “Não vai ter golpe!”]
Tenho dificuldade para entender. E não me meto no que acontece aqui [no Brasil], porque não me corresponde. Mas tenho de ser claro: aventuras com fardas de milicos? Por favor... Golpe de Estado? Por favor... Já vimos esse filme muitas vezes na América Latina e assim não foi. Esta democracia não é perfeita porque nós não somos perfeitos! Mas é preciso defendê-la para melhorá-la, não para sepultá-la!
[gritos de “Não vai ter golpe!”]
Concordo.
A América do Sul está bastante convulsionada, pelo menos. Mas cuidado: não atribuamos responsabilidade só aos outros. Vejamos: claro que a direita luta pelo lado dela! Claro! O problema são as oportunidades que nós damos a ela. O que significa? Que não podemos andar pela vida valores deles imbricados dentro nos nossos quadros. Os valores deles, da extrema-direita, são deles. Nós não precisamos de uma casa de luxo, um balneário de luxo, carro de luxo, hotel de luxo, da alta sociedade. Insisto: temos que viver com os valores da maioria do nosso povo. E aí não damos oportunidade. Se confundirmos vencer na vida com ter riqueza, vamos mudar de lado, mesmo sem nos darmos conta. Mais claro: não se trata de odiar quem tem riqueza, trata-se de localizar cada um em seu lugar. Se você gosta muito de dinheiro, dedique-se ao comércio, à indústria, a fazer dinheiro, mas não se meta na batalha política, em que é preciso ter carinho pelas pessoas. Precisamos de gente que seja capaz e saiba gerenciar a economia, mas não precisamos de que os apaixonados pelo dinheiro ditem o rumo político. E isso tem de estar claro, porque senão damos oportunidade ao golpismo de direita.
Sabem por quê? Porque as pessoas param de acreditar em suas ferramentas naturais que são os partidos progressistas de mudança. E, ao pararem de acreditar, perdem a confiança, e quando perdem a confiança, não resta nada além do “cada um por si”, e isso é o mundo da fera.
Os homens e as mulheres podemos perdoar erros, e perdoamos porque somos pecadores. O que não perdoamos é que mintam para a gente. Isso trai a fé. A crise que temos na América é desse tipo. E temos que aprender que a mesa deles é uma, e a nossa mesinha é outra. Eles precisam de muita coisa: confeitaria, doces caros, carros zero quilômetro, Mercedes Benz, Audi, e tudo isso. Nós podemos andar de Fusca.
Não precisamos. Portanto, não temos preço. Portanto, se não temos preço, somos conseqüentes com os interesses do nosso povo. É por isso que se tem de lutar. Há uma disputa moral, ética. A economia, até Adam Smith, se ensinava e se praticava junto com a filosofia e a ética. Com os estudos dos efeitos do mercado na economia, tentou-se separar a economia. Não se pode separar a economia da ética e da filosofia. A economia política é una! E, se você não tem coração, é porque tem bolso. E só tem sentimentos no bolso. Não se pode  ter as duas coisas.
O problema mais grave, não o único, mas o mais grave da América Latina é a desigualdade. A crônica desigualdade que tende a multiplicar-se. A economia pode crescer, mas por sua vez cresce a pobreza. Sobretudo, onde não exista um Estado forte que se preocupe em mitigar a crise de distribuição do mercado. Mas para ter Estado forte, é preciso ter duas coisas: responsabilidade política solidária no Estado, porque o Estado não é nem bom nem mau, é como uma ferramenta – depende de como se usa e para que se usa; mas o segundo elemento é que se tem de ter recursos. E isso se chama política fiscal. E, na América Latina, os ricos a elaboram para não pagar quase nada. E é preciso entender que com o Estado mísero, sem recursos, não pode haver política social de eqüidade, de educação, de saúde, de moradia. E é preciso fazer os setores acomodados da sociedade entenderem isso. Os ombros mais fortes têm de carregar uma carga tributária que se traduza nisso: que quem tenha mais pague mais. E isso da política fiscal é crônico na América Latina.
Ao contrário: olhem no mundo os países que estão melhores socialmente e verão que, em todos eles, a carga tributária é enorme. Isso não quer dizer que só por ter um caminho de altos impostos vamos ao desenvolvimento, porque a resposta é como gastamos o dinheiro e como o investimos. Essa é outra história. Mas não se pode melhorar a educação, por exemplo, sem dinheiro. Basta o dinheiro para melhorar? Não. O que está claro é que, se não tem dinheiro, não se melhora. Acreditem.
Mas, então, qual é o limite da pressão fiscal? O limite da pressão fiscal é a arte mais fina da política. Mais claro: se você encurrala [o empresário] tanto com impostos que não lhe convém trabalhar, ele foge, e então depois, em lugar de ter mais, você tem menos, apesar de ter uma causa nobre. Mas se você o acostuma a que sua eficiência empresarial vem pelo caminho de perdoar tudo de impostos e dá todos os privilégios, em vez de ter empresários o que você tem são parasitas. Essa é a questão. Não há nenhuma receita de bolo que defina isso. Essa é a arte da política.
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Mujica: Confiança no continente está afetada e direita vai tentar voltar ao poder

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E eu defendo: a educação e a cultura são instrumentos imprescindíveis para o desenvolvimento. E a capacitação técnica ainda mais. Mas precisa-se além disso da política adequada. Não basta. Por quê? Porque nenhum país era mais culto e tinha mais avanço científico que a Alemanha da Segunda Guerra Mundial. E vimos o fez. Também para ser bárbaro se pode ser muito eficiente pelo caminho do conhecimento. Quer dizer: que a pontaria política a longo prazo é decisiva. É decisiva. O ser humano é gregário. E, como é gregário, é um animal político, como afirmava Aristóteles. Quem desprezar a política não entende que a política é, acima de tudo, o esforço social para melhorar a sociedade. Nem quer dizer que eu esteja convidando vocês para se meter a atacar se quiserem lutar pela liberdade.
Por isso, a maneira honrada que tenho... Não vim ao Rio de Janeiro para me reunir com um montão de garotos que são um tesouro para dizer somente o que podem gostar ou entender. Tenho que assinalar o que tenho honradamente é um caminho de futuro. Se a maioria da juventude inteligente da América Latina não tiver a coragem para essa tarefa que é lutar por um mundo melhor, nossa América Latina continuará atomizada em países.
E aqui vou à segunda parte: o mundo está se reagrupando em unidades gigantescas. O mundo dos países que conhecíamos está ficando para trás. O mundo da cultura nacional, tradicional, que conhecíamos, não está a par do que está acontecendo no planeta.
A Comunidade Econômica Européia está aí com suas nacionalidades diferentes, com suas línguas diferentes, com suas histórias diferentes, mas está criando uma fabulosa unidade de capital, de técnica e de massas. Os Estados Unidos, já sabemos o que significa. E tem, às suas costas, uma espécie de terra vazia prometida pelo Canadá. E tem, por agora, a enorme vantagem de suas universidades e uma capacidade de pesquisa que o coloca em muitas ciências em vários postos adiante. Eu não me compadeço com a idéia de que [os EUA] vão cair como uma planta podre. Não acredito nisso. Do outro lado, a China, é o mais antigo estado nacional, que já sabemos o que significa e o que vai significar para o mundo que virá. Ainda, na retaguarda, está a Índia.
Vocês acreditam que os latino-americanos, sem uma voz comum, que identifique nossos interesses mais profundos, vai ter representação nesse mundo?
Vocês acreditam que os países mais gigantescos, como o Brasil, ainda não se dão conta de que chegam tarde e de que precisam do apoio de todo o resto de nossa América Latina para ser alguém nesse mundo de colossos?
Eu não vou estar vivo, garotos, nesse mundo, mas a maioria de vocês vai. E vão aparecer. Porque ninguém disse que esse mundo vai ser mais generoso. Ai dos fracos! E, para deixar de ser fraco, não há outro caminho que não tentar juntar-se com nossos iguais. E com quem nós latino-americanos vamos nos juntar, se não nos juntarmos entre nós? Até quando eles vão levar nossos melhores cérebros? Até quando vão nossas universidades vão estar atomizadas se  não formos capazes de juntar a inteligência latino-americana? Ter nosso próprio sistema de pesquisa? Sermos proprietários de nosso próprio conhecimento? Qual é nosso destino? Sermos compradores de conhecimento de ponta, como até agora? A batalha pela liberdade será também no campo da pesquisa! E é preciso ter isso claro.
Mas vimos correndo atrás. As multinacionais olham dentro de cada universidade e tratam de levar os mais brilhantes, o mais rápido que podem. E nos dão um consolo, um prêmio importante, e pagam muito mais do que nossas sociedades podem pagar, e com isso levam a nata do mundo. Até quando?
Então é preciso pôr tudo isso em cima da mesa. Sei que o Mercosul tem um monte de defeitos. Mas ai de nós se não existisse. Não é questão de jogar o bebê fora junto com a água do banho. É preciso lutar por um Mercosul muito melhor, muito mais complementar, e é preciso estar ao lado de todos os movimentos de unidade e de contribuição que existem na América Latina. Não é separando, não!
O Brasil, como é grande, tem uma velha discussão: há quem sonhe com que seja uma grande potência... sozinha. Chegou tarde, irmão – dizem os imperialistas. Chegou tarde!
A sorte não está em cima, a sorte está embaixo! Nosso tesouro, nosso grande mercado, são os pobres de nossa América Latina que é preciso incorporá-los à civilização. Esta é a disputa. A disputa é para dentro, por todos, e por todos os que estão oprimidos, pelos povos indígenas, pela identidade de todos. Juntar-se não é perder identidade. É a única maneira de garantir a identidade dos fracos.
Então, por favor, garotos, subam a cabeça. Vocês não têm por que deixar de serem brasileiros. Mas têm de ser latino-americanos e, depois, humanos.
Queridos, a vida é um livro aberto. Eu tive que viver muitos anos de solidão, mas não porque fosse herói; porque me pegaram, me faltou velocidade, nada mais. E fiquei oito anos sem nenhum livro. E tive de pensar. Tive de buscar dentro de mim a força que não podia ter fora. E peço a você: converse com o que você tem dentro. Estamos numa época em que estamos conectados com o mundo. Pim, pim, pim... Mas não se desconecte do que você tem dentro. Isso significa aprender a falar consigo mesmo em profundidade, sem piedade. Isso é que, como diz Machado, o que ensinou o segredo da filantropia. Não procure só fora: tem que procurar dentro de você mesmo, porque você tem um universo. Você tem de se aproximar de você mesmo, com seus erros, suas frustrações, para poder gostar um pouco mais dos outros. Se você não tentar conhecer-se a si mesmo, não vai conhecer ninguém.
Então, passei a vida lendo. A cada três, quatro anos, voltava a ler Dom Quixote de La Mancha. E leio tudo que posso da História da humanidade. A esquerda e a direita não começaram com a Revolução Francesa. Sempre a humanidade teve uma cara conservadora e uma cara solidária. Aí estão Ashoka, Epaminondas, os Gracos, São Francisco de Assis, e uma multidão muito antes de chegar à Revolução Francesa. Sempre. Talvez a humanidade precise de um traço de estabilidade e isso a cara conservadora do homem cumpre, mas a humanidade também precisa de mudança, porque o tempo não tem piedade e passa. A História humana se movem nesse vai-e-vem, mas ambas as posições têm doenças patológicas. A cara da mudança pode transformar-se em infantil e confundir desejo com realidade. Não ver a realidade porque tem o óculos do que deseja. A cara conservadora pode cair no reacionário, no golpismo, na violência. Por isso, é preciso conhecer tudo que se possa da aventura humana em todas as partes da Terra.
Mas, primeiro, comprometa-se a fundo a conhecer a dolorosa história do seu continente, começando pela do seu país. Você não pode operar no sentido político profundo do porvir, se não conhecer a história do seu país. Gaste o tempo em conhecer de onde viemos, para poder sonhar aonde vamos.
Acho que as mulheres não precisam de presentes concedidos pelos homens. Elas vêm, pelo menos no meu país, ganhando seu lugar por conta própria, sem presentes. [No Uruguai] Formam-se 100 mil profissionais por ano, 75% são mulheres. No parlamento, acabamos de aprovar 30 procuradoras de justiça – nenhum homem, todas mulheres. Daqui a pouco nós homens é que vamos ter de pedir cotas. Por quê? Porque as companheiras são menos preguiçosas que os homens e terminam a carreira. E os homens refletem, e as mulheres vão conseguir os direitos adiados, não por concessão, mas por imposição de sua capacidade na própria sociedade. E isso é uma evolução natural do peso do trabalho. Na medida em que o trabalho vai virando cada vez mais intelectual, vão desparecendo as distâncias que podiam existir. Há uma curta de preconceito ainda muito grande. Nota-se mais no mundo empresarial. É ali onde está mais entranhado o sentido mais conservador da espécie. Poucas mulheres capazes à frente das empresas. Mas não tenho dúvida de que este hoje é um processo irreversível.
Mas cuidado: não precisam de presentes de gentileza. Precisam de um lugar de luta e de oportunidade para demonstrar a capacidade que têm. Não acredito em igualdade de gêneros; acredito na igualdade de direitos. Por sorte não somos iguais, porque não valeria a pena viver neste mundo se fôssemos iguais. E não achem que digo isso por galanteio. Sou absolutamente consciente. Os homens sozinhos são inconvivíveis. Somos um desastre completo. Embora não nos demos conta, andamos pela vida precisando de uma espécie de mãe que sempre nos organize e nos conduza. Mas, como somos machistas por cultura, não gostamos de reconhecer isso. Em geral, uma casa nas mãos de um homem é um desastre. Por isso, acho que é preciso compartilhar e aprender a compartilhar.
Podem dizer: o que você faz com a sua mulher? E eu digo: eu lavo a louça, quando posso, e tento ajudá-la em tudo que posso e convivemos e somos felizes. Ela tem 70 anos e eu tenho 80. E tentamos construir um mundo em paz e em tranqüilidade.
Companheiros: os seres humanos precisamos de refúgio, e o refúgio é o ninho. Nunca se esqueçam. É preciso cuidar do ninho, mas para cuidar do ninho é preciso cuidar da companheira, acima de todas as coisas. E quando o ninho se quebra, é preciso chorar um dia e volver e começar a construir outro ninho e, assim, até o Juízo Final.
Queridos, fui um canero viejo (N. do T.: freqüentador de prisões), passei por um monte de perrengues, estive entregue a quatro prisões, fugi de duas. Dão pouca importância às prisões. É uma caldeira da cultura. O idioma muda nas prisões. Desde embaixo. Os mais desprezados da sociedade monitoram as mudanças idiomáticas. Até pouco tempo atrás dentro das prisões também havia valores. Não achem que isso é simples. Até no mundo do crime havia valores, o que quer dizer que havia coisas que não se podia fazer. A inclusão do tráfico de drogas como metodologia gerou um câncer de violência que vai muito além do tráfico de drogas e nos botou neste mundo contemporâneo onde parece que a violência não tem limites - não tem limites morais. E nunca tínhamos conhecido isso. “Você quer prata ou chumbo?” Esta é a alternativa. Eu acho que essa é uma das piores ofensas à civilização humana que tivemos até hoje e que todo esse arsenal merece ser repensado.
Agora, bem: todos sabemos que as prisões deveriam ser reabilitadoras dos seres humanos, particularmente dos jovens, dos que caem. Mas a realidade orçamentária e com os meios que temos à disposição a prisão não só não ajuda a superar as deformações que se trazem, mas em geral ajudam a muiltiplicá-las, pelo menos nesta América Latina. Ninguém quer saber de prisões, e isso é como o mundo fétido que está aí. Se chegam num bairro chegam a prometer que vão fazer uma prisão, as pessoas logo exige que a façam em outro lado, “aqui não”. Não queremos suportar as trancas da sociedade da qual somos parte. Essa é a realidade. E é muito pouco o espírito militante. Queremos resolver isso com profissionalismo.  Alguém pode acreditar que haja seres humanos que tenham vocação de carcereiro? Não.
Portanto, não creio que o caminho de multiplicar as penas ajude. Isto... Porque, se tivéssemos uma realidade melhor para oferecer seria uma coisa. Mas o que temos para oferecer na realidade é muito pior. É muito pior. Mais claro: as prisões, em boa parte da América Latina, estão transformadas em uma universidade do crime. E ainda queremos prolongar mais, e mais, e mais, essa penúria. Qual é a resposta? Onde estão acontecendo coisas positivas? E onde acontecendo coisas negativas que possamos fazer um balanço? Veremos. Onde há políticas que levem em conta esses fatores? E não é nos Estados Unidos, onde têm o recorde per capita de gente em cana. E os crimes se multiplicam - os crimes dos pobres. Os cheios de dinheiro não vão presos. Mais claro, companheiros: as leis podem ser as mesmas, iguais para todos, mas no “como se aplica” não há igualdade; há uns mais iguais que outros.
Então, não creio que com a multiplicação das penas que vamos ter uma mudança. Mas também lembre que o homem da rua existe, pensa e sente. E quando o escracham, quando o roubam, quando o tratam mal e quando pisam nele, e quando o pegam com uma menina e o acusam disso e daquilo etc., está cheio de ódio e rancor. É preciso entender o homem da rua. Pula com uma fúria. E crêem, ingenuamente, que o assunto se resolve aumentando as penas. Também vão padecer dessa contradição. Porque o homem da rua também tem sentimentos, e o homem da rua é nosso. E lutemos por ele, apesar de ele não entender. É a razão de ser: ele compõe a maioria. Por isso, lutem, lutem pelo melhor, mas entendam qual é a realidade, e não se desmoralizem, não abaixem as bandeiras. Os únicam derrotados que há no mundo são os que param de lutar.
Primeiro, dizia Einstein: “se você quer mudar, não pode continuar fazendo a mesma coisa”. No meu país, pequeno, e socialmente bastante adiantado em termos legislativos, tomamos uma decisão: como não podemos vencer o tráfico (a cada três pesos, um é por relação a droga; ou por tráfico, ou por crime cometido para comprar droga), apesar de reprimir, estávamos perdendo a guerra, decidimos arrebatar o mercado, deixá-lo sem fonte. Ou seja: estropear o negócio. Ou seja: pegá-lo na taxa de lucro. E isso não é legalização: é regulação.
Entendamos: o mercado está, muito apesar de nós, em 150 mil, talvez um pouco mais. Não tem outra alternativa além de comprar no mundo clandestino. Não há outro lugar para comprar. Está dado ao tráfico. Vendem bom, ruim, regular, sacaneiam. Mas esse é o mundo real. Nós não cremos que nenhum vício seja bom – exceto o do amor. Todos os demais são ruins. O tabaco é ruim, e mesmo assim fumamos. A bebida é ruim, e mesmo assim bebemos. Se eu tomo dois uísques por dias, talvez não seja bom, mas eu agüento. Se eu tomo uma garrafa, têm que me internar; sou um alcoólatra. Mas como podem me internar se estou no mundo clandestino? Este é o caso dos vícios. Se eu dou uma cota semanal ao sujeito e ele quer mais e mais, e eu detecto isso, então me dou conta de que tenho de atendê-lo. Mais claro: se o vício entra computada, estou a tempo de atendê-lo porque tenho identificado e o conheço. Se mantenho clandestino, vai continuar afundando no vício e, quando puder reconhecer, já será tarde, porque terei posto em alguma prisão por aí. Já será irrecuperável. Essa é a tese. Não é legalização. Não é dar força, “Consuma!”, “Viva a boemia!”, “Viva o fumo!”. Não! É uma praga! Mas como seres humanos, somos assim. Vamos lidar com a praga! Não queremos fazer como fizeram os ianques na década de 30, que declararam a Lei Seca, probiram e veio Al Capone. Foi pior que nunca. Pior que nunca, porque vendiam álcool de madeira. Bom, isso é o que estamos fazendo com as drogas.
Então. Mas, além disso, tem isto: para o mundo jovem, o ilegal atrai. O proibido atrai. Muito  mais. Se eu te vendo numa boate, como qualquer pessoa comum, você pôs dedo, venderam, tirei a poesia e o mistério do proibido.
Dará resultado? Não sabemos. O que sabemos é que o que vínhamos fazendo era gastar dinheiro com um contingente policial cada vez maior, ter uma montanha de custos, e cada vez ter mais gente que toma goela abaixo.
Então levantamos a bandeira do direito de buscar um caminho diferente. Por que o Uruguai faz isso? O Uruguai tem antecedentes disso. O Uruguai em 1914 reconheceu a prostituição e a organizou legalmente. E lutou e impôs os direitos sociais das mulheres que exerciam essa profissão. Não se pensou em proibir. O Uruguai, nessa época, nacionalizou a produção de álcool de alambique. Durante 50 anos, só quem produzia bagaceira, cachaça, uísque, conhaque, etc., era o Estado. Fazia de boa qualidade, cobrava caro e atendia a saúde pública. Não pensaram na Lei Seca dos Estados Unidos. O Uruguai estabeleceu, por essa mesma época, o divórcio pelo pedido apenas da mulher. O Uruguai inventou, nessa época, uma universidade feminina, para que as famílias conservadoras daquela época se animassem a mandar as meninas para estudar. Porque havia patriotas que diziam “as mulheres não devem estudar porque vão perder os doces costumes do lar”. Isso também existia. E houve antecessores, nossos bisavós, que tiveram a audácia de enfrentar os preconceitos da sociedade. Eu podia continuar relatando coisas.
É natural que o Uruguai tenha tido a coragem, país pequeno, de fazer uma proposta distinta, e não fazer a covardia que estão fazendo nos Estados Unidos, onde há estados onde, com a lorota do uso medicinal que põe um receituário cheio de assinaturas de médicos, você entra numa loja, preenche o formulário e diz “tenho uma dor nas costas” e compra maconha e tem um médico que atesta para você – e é claro que te cobra para isso. Não! Achamos que isso é cinismo. Não. Nós vamos pelo caminho dos fatos. E, bom, vamos levar porrada de todos os lados, mas pelo menos saibam como é a coisa.
Companheiros: Deus, dizem, que era muito poderoso e fez o mundo. E teve que descansar no domingo porque estava cansado. Imaginem um velho de 80 anos, que não é Deus. Temos que terminar. E tenho que dar um abraço de coração em vocês. Para mim, a vida começa com vocês. E vou me despedir brindando por aqueles de vocês que levantem as bandeiras quando nossos ossos já não possam mais levantar bandeiras. Obrigado.

Transcrição: Pedro Aguiar
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/41486/leia+transcricao+da+integra+da+palestra+de+jose+mujica+na+universidade+do+estado+do+rj.shtml
JOSÉ MUJICA e TRANSCRIÇÃO DE PEDRO AGUIAR
Enviado por DIANA GONÇALVES em 02/09/2015


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