INOCÊNCIA
Um vulto misterioso insinua-se na penumbra da noite. Era tempo de mudança..
Os movimentos estudantis espocavam na França. Aqui, ecos dos ideais e da luta iniciavam seu levante. Era sessenta e oito. Inocência mal saíra dos panos da razão. Sabia do que ia pelo mundo pelos jornais que vinham embrulhando a carne, o frango ou o peixe. Revistas antigas apareciam de vez em quando. Assim ela formava seu mosaico de informação, recheado de fantasia, de idealismo nascente e um romantismo ingênuo, permeado de ignorância e ilusão. No círculo religioso dominante, algumas vanguardas reivindicavam transformações nas liturgias, maior proximidade com o povo. Inocência já mostrava, quando criança, propensão para os estudos e descobertas, pois mal conhecera as primeiras letras, passava horas desenhando no ar sabe-se lá que palavras, frases, desejos e sonhos. Sua mãe dizia que os estudos a perturbaram e quiçá estava ficando louca. Aventou-se até não mandá-la mais à escola. Uma professora visitou a casa e dissuadiu a família desse intento. Talvez por ter lido vida de santo quando criança, talvez porque já nascera com uma vocação mística e crente, tornou-se muito religiosa. De freqüentar o culto, participar ativamente da comunidade, levantar muito cedo, sacrificar todo tempo livre nos domingos, feriados e o que restasse depois de trabalhar todos os dias úteis. Onde estivesse, chamava atenção por sua vivacidade, dedicação, beleza e certamente sua ingenuidade inconsciente. Possuía uma sensualidade natural, um corpo sinuoso, mas naquela época o conceito de consciência do corpo era uma incógnita para a moça. Conheceu nos trens da Central do Brasil um grupo de moças que professava a mesma fé. Tinham em comum serem fãs de Elis Regina. Uma delas ia a todos os shows da cantora, promovia entrevistas com a artista, que depois ouviam no seu gravador enquanto viajavam no trem superlotado. Partilhavam da visão dos novos tempos. Buscavam introduzir nos cultos as mudanças preconizadas por João XXIII. Adotar a língua portuguesa, o celebrante postar-se de frente para os fiéis, hinos com um tom mais coloquial. Tudo combinado. Inocência falaria com o responsável pela sua igreja para convencê-lo das novas idéias. Foi assim que naquela noite ela dirigiu-se à velha igrejinha de tijolos expostos. Conversaria com o responsável e inauguraria um novo tempo naquela comunidade. O que aconteceu naquela noite as meninas nunca ficaram sabendo direito. Só que a jovem sonhadora, idealista e dedicada perdera sua inocência, sua fé pura e as bases que sustentavam até então a sua crença em Deus, na Igreja e nos homens. Mas Inocência guardava em seu interior a força da superação. Depois de amargar anos tentando superar o trauma que abalou a estrutura que a mantinha sobre o mundo que acreditava existir, depois de muita leitura de auto-ajuda, análise, conhecer outros credos religiosos, eis que surge a Inocência possível, filha de um tempo de grandes transformações, de uma sociedade que está a pedir uma revisão radical de valores, fruto de uma nova consciência. 22/04/2007
DIANA GONÇALVES
Enviado por DIANA GONÇALVES em 22/04/2007
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