Dirce Carneiro - Diana Gonçalves

Textos

MARIO DE ANDRADE - PARA COMPREENDER O MODERNISMO V

ESTILO MARIOANDRADINO

A coerência entre visão de mundo, matéria do poema e a técnica que as transformam  em poesia.

Observemos as chaves estilísticas da sua poesia que será também da poesia moderna em geral.

A palavra em liberdade, seja por influência de Marinetti ou de Whitman, a técnica “palavras em liberdade” (“velha como Adão”, no dizer do próprio Mário), foi bastante usada por Mário, mas nunca chega a ter a dimensão “caótica” que assume em alguns vanguardistas europeus, por causa da visão ordenadora que a rege. Temos em Mário a forma caótica e mensagem ordenada. Ele fala sobre isso em A Escrava que não é Isaura;

O interseccionismo, o simultaneismo (polifonia), a superposição de idéias e imagens. Presença na poesia de elementos de planos diferentes no tempo e/ou espaço, mas encadeados ou mesclados num só fluxo de expressão (v. poema Inspiração: São Paulo, comoção da minha vida...; e Meditação sobre o Tietê). Surge pela “substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente”.

A reiteração, técnica poética bem antiga, revitalizada pelo modernismo; intensificação da matéria poética. Os significados essenciais do poema são intensificados. A essência no poema Inspiração está no verso “São Paulo, comoção da minha vida...” reforçado por essa técnica.

Esquema rítmico e rímico. A substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente; a necessidade de captar a realidade em si para expressar o novo, veloz e caleidoscópico mundo moderno, pede a estrutura estrófica livre, composta de versos curtos, brancos e livres. Predominam os curtos em Paulicéia Desvairada (Momento e Imediato); progressivamente mais longos (no decorrer dos anos e livros) devido à adesão do poeta ao Tempo e à História; até chegar à longa fluência dos versos de “A Meditação do Tietê”.
As rimas, libertas do esquema tradicional, são redescobertas como recurso para atingir não só a musicalidade ou harmonia poética, mas como elementos constitutivos do poema. Exemplo disso, o poema de abertura de Paulicéia: “São Paulo! comoção de minha vida.../Os meus amores são flores feitas de original...”. As palavras se ligam não só pela semelhança fônica, musical dos significantes, mas também pela correlação entre os significados. Exercem importante papel no sistema rímico as aliterações e assonâncias. O ritmo surge como necessidade do dinamismo interno do pensamento poético e não por esquema pré-fixado.

O soneto é uma exceção, dentro dessa liberdade formal da sua poesia. Ele os compôs na forma ortodoxamente tradicional. Seria uma incongruência. Haroldo de Campos atribui a presença desses poemas em forma fixa à preocupação de Mário com a estética parnasiana, e o desejo de mostrar que sabia “fazer sonetos em clave áurea”. No entanto, há poucos sonetos no volume das Poesias Completas.
Em “O Artista”, nota-se no remate a intenção irônico crítica do autor ao costume de publicar cujo critério recaia sobre a condição social e não sobre a capacidade literária, tendo como finalidade o aplauso do público em saraus familiares e da crítica oficial do momento. Registra o apreço a mestres como Vicente de Carvalho e Francisca Júlia (não esqueçamos de que a natureza de Mário é a de um “homem de raízes”). Aqui o soneto está para Mário como o sarampo está para a infância.  Ele o “metrificou e rimou” com dez anos de idade.  
Há sonetos com grande interesse estilístico pela quebra do esquema e pela fusão de realidades distintas, como “Tabatinguera”, in Losango Cáqui), composto em dois quartetos e dois tercetos; “Platão” foi escrito a partir da hilaridade causada pelo poema XXXIII (fusão lírica poeta-mundo com o estilo fragmentário modernista), “publicado na Klaxon o poema anterior causou hilaridade. Era natural. Por caçoada vesti minhas sensações e idéias com este soneto”.
Com o soneto “Platão”, está evidente que a intenção de Mário não era mostrar que sabia sonetar, mas sim mostrar ao público que se vestisse sua idéia com a forma a que eles estavam acostumados, sua poesia seria aceita. Era uma crítica aos que não se davam ao trabalho de sondar a significação essencial da poesia, acolhendo ou repudiando, exclusivamente baseados na aparência formal, na fórmula estilística.
Os dois últimos sonetos, “Quarenta Anos” e “Soneto”, de A Costela do Grão Cão, marcam a fase crítica de evolução em que o eu lírico gradativamente passa a dominar o primeiro plano poético. Nesses sonetos aparece a intenção  em mostrar seus vínculos (de ordem existencial, não estética) com o Tempo, o Passado, a Tradição. Pela leitura dos dois sonetos, é evidente que a escolha da forma deveu-se a imperativo mais profundo do que o desejo de demonstrar perícia metrificadora. “Quarenta anos” registra o balanço da vida e a escolha da forma soneto fala da tradição, isto é, do eterno da condição humana; Mário relacionava ao soneto o que permanece no homem e na poesia; uma reação em face da vida, que poderia ser a mesma em Petrarca ou Camões; é o elemento estruturante, constitutivo  da matéria que está sendo cantada;
No último soneto, a matéria é o amor, tão refutada pelos modernos. É a presença do “passadismo” em Mário, essa esporádica opção pelo soneto, se confrontado com Oswald e ainda com Mayakovski? Fundamental é não perder de vista as circunstancias que norteiam as escolhas de Mário, que descobre que o amor não pode ser aniquilado, sem amputar algo essencial no homem. Além disso, a forma soneto tem sobre si a carga simbólica que carrega, isto é, veículo expressivo do mais essencial lirismo amoroso.

O sistema imagístico – signo real e signo metafórico. Sua poesia é construída com o plano real-concreto e com o plano metafórico.

O símile, embora antigo, importante pela redescoberta do mundo na nova ordenação de seus elementos. Presente em Mário uma das tendências mais marcantes da poética vanguardista de seu tempo e da literatura atual, que é relacionar,  numa figura,  elementos pertencentes a campos semânticos diferentes. Foge à associação de raiz lógica, que presidiu os processos tradicionais (clássico/romântico/realista). Em Paulicéia, há nove símiles caracterizados por ser o primeiro termo da comparação variável (emoção, sentimento, seres ou coisas) e o segundo sempre coisa concreta.

O sistema lingüístico:
. vocabulário: concentração no substantivo; rarefação do verbo e advérbio; adjetivo predominando sobre o epíteto e indispensável para o dizer poético.

. sintaxe: adequação metro-sintaxe e forma nominal: frase nominal (sem verbo). Recurso de que se valeu o poeta para conciliar a tensão crítico-racionalizadora (própria do pensamento lógico) com a tensão poética (própria do pensamento intuitivo).
Mário evolui da frase nominal para o discurso (frase completa), à medida do seu amadurecimento existencial como poeta, enfraquecendo sua tensão racionalizadora. A tensão poética surge liberada da lógica e dos pressupostos estéticos do início. Interessante seria o cotejo desse item com o que Jean Cohen chama de violação do paralelismo fônico-semântico, como definidor da verdadeira poesia, elemento básico que a distingue da prosa.
Em Mário sempre houve uma adequação metro-sintaxe (pensamento lógico), tendo a natureza prosaica sido neutralizada poeticamente pela frase nominal e pela pontuação.
Em “Meditação sobre o Tietê”, desaparece a adequação, emergindo novo discurso, próprio da linguagem poética.

. linguagem familiar, coloquial – reação contra a “literatice” tradicional , é fonte para recriação estética. Predomina no início, evolui com o tempo.

. a não pontuação; único princípio vanguardista não adotado por Mário. Novidade estilística de repercussão modernista e até hoje celebrado. Coerente com seu universo poético, com sua recusa à lógico-ordenadora no plano estético, mas não no plano existencial. Nesse sentido, Mário nunca fora um revolucionário destruidor, anti-histórico, na linha cubismo/futurismo/dadaísmo.
A ausência de pontuação conduz à plurivocidade do poema (várias possibilidades de leitura). A inteligência ordenadora sempre esteve presente, como fator prevalente na sua visão de mundo.


SEIS HORAS LÁ EM SÃO BENTO...

Seis horas lá em São Bento.
Os lampiões fecham os olhos de repente
À voz de comando dos sinos
A madrugada imensamente escura
Abafa as arquiteturas da praça.
E a estátua de Verdi também, graças a Deus.

Mãos nos bolsos
Grupinhos entanguidos
Encafuados nas socavas dos andaimes
Os reservistas que nem malfeitores.

        Dlem! Dlem!...
       “SANT’ANA”

Vem vindo a procissão com tocheiros e luzes
E principia o assalto agitado sem vozes.
     Anticlericais!
     Fora estandartes andores!
     Desaparecem os padres da noite.
     As filhas de Maria das neblinas
     Espavoridas pelo Anhangabaú...
Assaltantes equilibrados nos estribos.

Estilhaço me fere nos olhos o sangue da aurora.
Risadas.
             Chamados.
                             Cigarros acesos.
           Incêndio!
                      Extermínio!
                                 Vitória completa...

Faz frio de geada esta manhã...

A gente se encosta nos outros pedindo
Uma esmolinha de calor.
E o bonde abala sapateando nos trilhos
Em busca das casernas sinistras cor de chumbo.

Mário de Andrade, in Losango Cáqui


Fonte: Mário de Andrade, Nossos Clássico e Mario de Andrade para a Jovem Geração, Nelly Novaes Coelho.
DIANA GONÇALVES
Enviado por DIANA GONÇALVES em 13/11/2009


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