Dirce Carneiro - Diana Gonçalves

Textos

UM OLHAR SOBRE ESTE MALUCO BELEZA
Por que certas canções colam em nós?
Mesmo sem saber “a sua mais completa tradução” elas grudam no inconsciente.
Esta canção interpretada por Raul Seixas tem este efeito, causado pela combinação intrigante de letra e ritmo.
Não é só a irreverência, o humor, a ironia e uma certa tristeza que pressinto ao ouví-la. Existem aí “razões que a própria razão desconhece”
Por quê?  
Tentei desvendar alguma dessas razões, sem o rigor de uma análise. Envolve questões interdisciplinares,  principalmente de apoio musical para tanto.
Talvez o resultado fale muito mais de mim do que os autores quiseram dizer de si.
O sentimento de inadequação ao mundo às vezes nos faz aprendizes de seres normais. E para não enlouquecer, transitamos por mundos criados por nós, numa dicotomia que tanto pode ter um aspecto muito criativo, como pode também beirar a esquizofrenia, numa fragmentação do “eu”.
E dependendo do talento para viver num mundo de faz-de-conta,  da capacidade de sobrevivência de cada um, onde não existe a dialética entre a lucidez e os fatos observados e vividos, este jogo pode ser vital ou  perigoso.
Afinal, o que é ser normal? O que é ser louco?
Uma vez, li sobre a carta  do Tarô: “Ao louco nada importa, tanto faz ir à esquerda, à direita, para frente ou para trás, ele anda olhando para cima, alheio ao abismo a seus pés”.
Afinal, tal atitude é de um iluminado ou de um tolo?
Algumas pessoas parecem viver muito à frente do seu tempo.
Teria sido o caso de Raulzito?
Uma de suas canções diz: “Eu sou a mosca que pousou na sua sopa”...
Sugere que ele veio para incomodar...
A qual dos mundos ele sucumbiu? Ao mundo exterior que ele via ou ao mundo interior que ele vivia?


Maluco Beleza
Raul Seixas
Composição: Cláudio Roberto / Raul Seixas

Enquanto você
Se esforça pra ser
Um sujeito normal
E fazer tudo igual...

Eu do meu lado
Aprendendo a ser louco
Maluco total
Na loucura real...

Controlando
A minha maluquez
Misturada
Com minha lucidez...

Vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza...

E esse caminho
Que eu mesmo escolhi
É tão fácil seguir
Por não ter onde ir...

Controlando
A minha maluquez
Misturada
Com minha lucidez
Eeeeeeeeuu!...
Controlando
A minha maluquez
Misturada
Com minha lucidez


Vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com toda certeza
Maluco, maluco beleza...


O início sugere algo em andamento, uma ação anterior antes de proferir sua análise e sua crítica. Depois, inicia: enquanto. Seguem ações concomitantes do objeto e do agente que vê.
A letra apresenta o mundo sendo observado, passando pelo olhar crítico do aspirante à quase loucura, que pretende mesclar com a lucidez. Lança  juízo de valor sobre o que vê. Analisa. Critica. É ao limite entre a lucidez e a loucura que o poeta aspira e irá transitar.

A letra, mistura o prosaico e o poético, quadrinhas metade rimadas, metade livres, a primeira, a segunda e a quinta.

A primeira e segunda estrofes descrevem um movimento em uníssono (ação) o objeto observado e do sujeito, respectivamente. Apoiam essa rotina o ritmo, sempre igual, o tom irônico, crítico e debochado dos versos.  Mas também há um sentimento de tristeza nesse olhar do homem perante o mundo. A melodia faz uma caricatura do mundo retratado pelo autor, representada pela pronúncia distorcida das palavras no final dos versos: Um sujeito normal / E fazer tudo igual...

Um sujeito normaú / E fazer tudo iguaú...

Notemos que ser um sujeito normal/E fazer tudo igual – não é um comportamento natural, espontâneo. Exige esforço, por isso a imagem do ser fica distorcida, forçada, afetada, caricata (normaú, iguaú).

É quase possível ver a representação visual, a imagem distorcida, disforme e caricata da figura retratada. E isso se dá quase exclusivamente através do ritmo.

Enquanto a primeira estrofe retrata o aprendiz de ser normal (normaú...), a segunda retrata igualmente o aprendiz de louco: Eu do meu lado /Aprendendo a ser louco / Maluco total / Na loucura real...

Igualmente a mesma visão, o mesmo tom irônico, crítico e debochado dos versos, formatados em quadrinhas metade livres, metade rimadas. A mesma distorção, sugerindo a caricatura representada pela pronúncia distorcida das palavras no final dos versos, apoiada de maneira muito inteligente pelo mesmo ritmo melódico:

Maluco totaú / Na loucura reaú...

Na terceira estrofe há uma quebra do ritmo (Controlando/A minha maluquez/ Misturada /Com minha lucidez...) que atinge o ápice no início da quarta estrofe (Vou ficar/ Ficar com certeza / Maluco beleza /Eu vou ficar / Ficar com certeza / Maluco beleza...) sendo a pronúncia da palavra ficar bem prolongada e alta, num grito, não de alegria e contentamento, mas de euforia, misto de rebeldia e excitação, como a imitar a demência. Para depois retomar um tom mais sóbrio e lúcido nos versos seguintes, modo que se repete até o final, dando o espectro do que vai ser a esquizofrenia do aprendiz de louco no mundo dos aprendizes do que é ser normal.

Notemos que a maluquez e a lucidez se equivalem e se alternam como bem diz a canção, presentes a aliteração em /EZ/:

Controlando / A minha maluquez /Misturada / Com minha lucidez...

Na quinta estrofe, o conflito resolvido pela solução esquizofrênica, retoma o formato das duas primeiras estrofes: a quadrinha metade livre, metade metrificada e rimada. O mundo exterior absorve e formata o aprendiz de louco, na tentativa de se adequar ao ambiente que o contém. Já o quase louco, sem opção,  não vê lugar para ele nesse mundo, então qualquer caminho, qualquer direção,  tanto faz ...

E esse caminho
Que eu mesmo escolhi
É tão fácil seguir
Por não ter onde ir...

E a constatação nas sílabas prolongadas e altas dos versos rimados (seguiiir/iiir) já não soa caricata e irônica, mas triste e desalentada, um sentimento de inadequação no mundo, embora no mesmo ritmo melódico de antes, sugerindo que apesar do esforço, ele volta à condição inicial, o mundo continua o mesmo, sendo capaz de absorvê-lo. A nível semântico a quinta estrofe nos fala do mundo (a forma) no qual o poeta está inserido (o conteúdo, ele, o quase louco).
/É tão fácil seguir/ Transmite um certo desalento e como mencionado acima, para o louco, tanto faz, portanto, tudo estará beleza, ao “Maluco Beleza”, já nada importa.

A sexta estrofe dá a medida da alternância e tentativa para a adequação ao mundo, talvez, como meio de sobreviver a ele:

Controlando
A minha maluquez
Misturada
Com minha lucidez
Eeeeeeeeuu!...
Controlando
A minha maluquez
Misturada
Com minha lucidez

E o trânsito entre a lucidez e a loucura se travestem em maluquez (nem normal, nem louco) a condição que pretende ser a ponte entre os dois mundos (o exterior e interior) o objetivo e subjetivo vividos pelo mesmo sujeito,  o que dá o tom da esquizofrenia do aprendiz de viver em dois mundos ao mesmo tempo.
A partir daí o que vemos é uma espécie de fragmentação do ser, na letra da canção as aliterações em /EZA/ dão o suporte à composição, apoiada pelo ritmo que se repete até o final,  a palavra /ficar/ sempre em destaque, com a pronúncia alongada e mais alta, num grito irreverente, eufórico e excitado, como que pretendendo assustar o mundo estabelecido e organizado e ao mesmo tempo indiferente a ele, onde a sobrevivência possível é a penumbra entre a lucidez e a loucura, cuja ponte é realizada pelo dialeto da maluquez, a pseudo-loucura,  o tom e os sons da fala e da melodia da sétima e última estrofe, cujos versos se repetem, a sugerir (ou afirmar) a impossibilidade de sustentar a dualidade pretendida, o trânsito sem ônus por tal dicotomia.

Vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com toda certeza
Maluco, maluco beleza...


Diana Gonçalves
15.09.09
DIANA GONÇALVES
Enviado por DIANA GONÇALVES em 15/09/2009
Alterado em 20/06/2016


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